Leia um poema de Júlia de Carvalho Hansen
Uma reunião de 27 poemas escritos entre 2013 e 2015, Seiva veneno ou fruto (2016) é o último livro de Júlia de Carvalho Hansen, autora convidada da Flip 2018. Lançada pela Chão da Feira, iniciativa editorial realizada pela poeta ao lado de outras três mulheres, a publicação é permeada pela busca de uma transcendência do real, tenta dialogar com deuses, vegetais e animais. É marcada por uma visão da poesia como tarefa espiritual.
Na Flip, Júlia de Carvalho Hansen integra a mesa 3, Barco com asas, com Laura Erber e Maria Teresa Horta, que participa por vídeo.
Leia um poema:
É preciso recriar o acontecer.
Dispor de lãs para o inverno
ouvidos para as mensagens
e peles para marcar os sinais
com a ponta do dedo em brasa.
É preciso saber
as regras dos jogos
como extrair os venenos
e que palavras abrem portas
nas orações que ainda não foram compostas.
É preciso retomar a saída da cidade
alimentar os estrangeiros chegados na madrugada
e que depois de terem os pés lavados
acenderam suas fogueiras.
Fornecemos mais do que gravetos e faíscas em gel
mas também papel para que ardessem
ou escrevessem as técnicas de suas civilizações
nas quais o vento tem outros significados
pois as asas de seus deuses batem desde o oeste
e por aqui todos sabem que os deuses vêm da América do Sul.
Os estrangeiros às vezes têm ideias estúpidas
mas não vamos protegê-los de si mesmos
preciso é retirá-los de perto da falésia
para que não caiam nem decidam partir.
É preciso dar a eles a agricultura
pois são o ventre deste país
embora não saibam trazer a chuva
pelo menos respeitam as pragas
e evitam as devastações.
É preciso aquecer os músculos e hidratar a garganta
dar escudos duros e afiar as lanças dos que combatem
protegendo as pedras que dão água.
É preciso não salvar os mortos
mas limpar as ruínas de suas guerras
sem arrancar as ervas daninhas.
É preciso fornecer plantas para a sombra
e luzes no lugar dos olhos
daqueles que perderam a cabeça.
É preciso acolher os feridos
e deitar sal e cinzas
nos seus ferimentos.
É preciso acalmá-los.
E acalmá-los é dar guarida ao breu em que estão.