O Nobel da literatura Thomas Mann (1875 – 1955) e seu irmão, Heinrich Mann (1871 – 1950), são a dupla fraterna mais virtuosa da literatura alemã. Autores, respectivamente, de livros como A montanha mágica (1924) e Professor Unrat (1905), os dois compartilham, além do talento literário, uma herança familiar pouco conhecida: a ascendência brasileira. Mãe dos dois, Julia da Silva Bruhns Mann (1851 – 1923) nasceu em Paraty (RJ) e mudou-se aos sete anos para a Alemanha, levando consigo seu caráter forte, seu amor pelas artes e sua mentalidade livre – características que inspiraram personagens dos livros mais famosos dos filhos, como Os Buddenbrook (1901) e Doutor Fausto (1947).
É na história de Julia que foca o documentário Entre culturas – Julia Mann (2016), lançado no Brasil no último sábado (21) pelo Sesc Paraty, em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF). Com roteiro do escritor suíço Peter K. Wehrli, o filme tem como objetivo apresentar aos brasileiros a figura de Julia Mann, fazendo a ponte cultural entre o Brasil e a Alemanha e mostrando a crucialidade da brasileira para a obra de Thomas e Heinrich Mann.
“Foi Julia quem brigou com o marido [o comerciante alemão Johann Heinrich Mann] para que deixasse os filhos escreverem, em vez de seguir a profissão dele. Sem ela, muito provavelmente não conheceríamos as obras de Thomas e Heinrich de uma forma tão rica”, afirma à CULT Wehrli, que também é próximo da família Mann.
O documentário, originalmente produzido para a televisão suíça, narra a história de Julia desde a infância na fazenda Boa Vista, em Paraty, passando pelo seu casamento com Johann Heinrich Mann até o momento em que, já viúva, decide tornar-se uma agitadora cultural em Munique. Como fio condutor, uma atriz narra as memórias que a própria Julia registrou no livro Aus Dodos Kinderheit (algo como “da infância de Dodô”, seu apelido de criança), publicado em 1958 pelo neto Klaus Mann.
Segundo o filme, Julia viveu em Paraty até os sete anos, quando uma epidemia de cólera levou seu pai, o fazendeiro Johann Ludwig Herrman Bruhns, a mandar os cinco filhos para a pacata cidade de Lübeck, no norte da Alemanha. “Não foi uma mudança fácil. Os alemães na época achavam que qualquer ‘raça’ misturada era pior do que a branca. Então, a chegada de um grupo de brasileiros bronzeados, que mal falavam alemão e que ainda por cima traziam uma babá negra [chamada Ana], era visto com maus olhos”, conta o roteirista.
A vida regrada em Lübeck, diferente da levada em Paraty, era difícil para Julia, que adorava as artes, prezava sua liberdade e tinha um forte desejo de ser atriz, profissão que seu pai proibiu por considerar vulgar. Vendo-se diferente, ela se esforçava para parecer uma típica e comportada jovem alemã: aos 17 anos, casou-se com Johann Heinrich Mann, com quem teve cinco filhos – Heinrich, Thomas, Elisabeth, Augusta e Viktor Mann -, mas ainda assim lutava para manter o que Wehril chama de sua “alma brasileira”.
“Thomas lembrava da mãe como irreverente, algo que ele levou para suas páginas. Já Heinrich dizia ter herdado a veia artística da mãe, e não do pai que se colocava tão distante quanto podia das artes. Ele dizia também que Julia, no casamento, era uma espécie de prisioneira da moral burguesa, algo que a impedia de viver sua paixão pelas artes”, coloca o roteirista.
As influências de Julia nos escritos dos filhos, que vão além das intervenções frente ao marido rígido, também são abordadas no filme. Na obra de Heinrich, que sempre teria se interessado mais do que o irmão pelas histórias da mãe sobre o Brasil, Julia aparece de forma quase óbvia: “Ele nos dá a imagem completa da mãe em diversas personagens femininas e ao retratar, de forma crítica, a sociedade que a oprimia”, conta o roteirista, exemplificando com títulos como O súdito e Professor Unrat.
Thomas, por sua vez, falaria da mãe de uma forma simbólica, através, por exemplo, da borboleta Hetaera-Esmeralda, que o personagem Adrian Leverkuhn, de Doutor Fausto, vê em um álbum do pai – um inseto tipicamente brasileiro, de que Julia sempre falava. “É uma borboleta lindíssima, enorme e irreverente, que invade a casa em seu vôo leve, tal qual a mãe dos Mann”, diz o roteirista, que também crê que Julia serviu de inspiração para Gerda Arnoldsen, de Os Buddenbrook, e para a Senadora Rode, de Doutor Fausto – mulher que, como fazia Julia em sua viuvez, disputa com as filhas os namorados.